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O ESG e o seu sentido jurídico

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Sumário

Muitos são os sentidos dados ao acrônimo ESG e a suas extensões e aplicações. Entre as concepções mais difundidas está a do relatório “Who Cares Wins”, de 2004, do Pacto Global da ONU. No relatório o termo está ligado à integração e à incorporação de aspectos ambientais, sociais e de governança na gestão e nas tomadas de decisão em organizações, assim como para aferição e critérios em investimentos sustentáveis e favoráveis a todos os stakeholders.

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Para o IBGC, o termo expressa os critérios ambientais, sociais e de governança para que se avalie o avanço das organizações em direção à sustentabilidade, demandando uma agenda capaz de indicar ações viabilizadoras da integração desses três aspectos na estratégia e na tomada de decisão. [1] Isso explicitaria as questões sociais, ambientais e de governança relacionadas aos negócios, proporcionando os processos e métricas para acompanhar a evolução dessas variáveis dentro das empresas.

A ABNT PR 2030:2022 fixou uma abordagem do modelo de gestão e orientação para relatórios de comunicação e engajamento com as partes interessadas. Para a ABNT “ESG” é um conjunto de critérios ambientais, sociais e de governança, que devem ser considerados por organizações ao gerenciarem suas operações, e por investidores ao realizarem investimentos.

Nada obstante, o termo de algum modo deve apontar para um sentido estratégico no estabelecimento/reunião de critérios e de ações na estrutura e na atuação de uma pessoa jurídica ou então em relação a determinada política, iniciativa ou projeto, articulação essa com a eminente função de orientar, portanto, a governança e a gestão organizacional.

Além disso, referida estratégia se relacionaria com a tarefa de qualificar investimentos e subsidiar as decisões, diretriz que necessita considerar de forma sistêmica os riscos e impactos ambientais, sociais e de governança. Cuida-se de uma visão de propósito social, humano e institucional acima ou no mesmo nível da eficiência/lucro.

No entanto, apesar de todas essas conceituações, para fins de avanços na pauta, prevenindo e combatendo as famigeradas práticas de “greenwashing” e falácias do tipo, é fundamental que o Direito e seus operadores busquem o concreto significado destas estratégias. Neste caso, quanto à relação com as normas jurídicas incidentes sobre as organizações e os seus impactos ambientais, sociais e de governança. Afinal, com a agenda ESG, para além da pressão social, o setor empresarial passa a ter um conjunto de razões jurídicas para ser e parecer mais sustentável. [2]

Com tantos sentidos “ad hoc” dados à agenda ESG, é preciso tentar identificar o que minimamente representa essa estratégia nas empresas e organizações, especialmente naquelas detentoras de significativos impactos e riscos. Em tempos de emergência climática e de crises social e econômica, o mundo passa por literal metamorfose, exigindo das políticas e normas um controle sobre desafios inéditos e incertos, como sublinha Ulrich Beck [3].

Assim, a responsabilidade corporativa e empresarial, por óbvio, também se alterou, indagada cada vez mais acerca dos efeitos negativos das atividades econômicas nas pessoas e no planeta, sendo fato que grande parte do agravamento do aquecimento global dos últimos 30 anos, por exemplo, seria causado por 100 empresas. A atual reorientação dada à responsabilidade corporativa, impulsionada pela agenda da estratégia “ESG”, merece atenção quanto aos seus fundamentos e sentidos jurídicos.

Possível se cogitar um sentido jurídico de ESG no âmbito de uma organização, pública ou privada, como na observação mínima a comportamentos preventivos, detectivos e reparadores, induzidos ou exigidos pelo ambiente regulatório incidente, cuja articulação seja capaz de conformar e constituir efetivas governança e a gestão acerca dos riscos e impactos causados, conduzindo as atividades econômicas ao caminho sustentável. Daí se pensar a agenda ESG como um meio à consecução da sustentabilidade.

Falar de sentido jurídico traz a ideia de juridicidade, a qualificação ou estado/caráter do que é jurídico e em conformidade com as normas vigentes, a propriedade das práticas sociais de responderem a uma finalidade, sob pena de sanções, entre outros efeitos.

Nessa perspectiva, embora os fatores não-compulsórios ou impositivos possuam grande importância para a difusão e internalização dessa agenda, refletir a respeito de um sentido jurídico mínimo da abordagem ESG em uma empresa deve indicar os seus deveres jurídicos, para os fins desta análise, enquanto pessoa jurídica sujeita a normas legais ligadas a sua estrutura, fins e atividades, observando, sobretudo, a função social.

Sem a pretensão de esgotar o tema, haveria sentidos jurídicos iniciais específicos para cada aspecto que sustenta o acrônimo ESG e que constitui a conjugação articulada desses vieses em uma pessoa jurídica de direito privado.

Sentido jurídico de ESG na dimensão ‘E’ ambiental

Dentro da dimensão “E”, do inglês Environmental, ou do “A”, de Ambiental, devem estar abarcadas as questões ambientais e climáticas relacionadas aos riscos e aos impactos potenciais ou concretos no desempenho de atividades, projetos e investimentos.

A literalidade do artigo 225, caput, da CF de 1988, preconiza a proteção do meio ambiente como um direito fundamental (artigo 5º, § 2º, CF/88), mas também como um dever do Estado e da coletividade, neste caso, dos agentes privados e demais detentores de atividades econômicas. Trata-se de um direito-dever fundamental imposto ao Estado e à coletividade, incluídas, por óbvio, organizações privadas dotadas de atividades poluidoras e impactantes.

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Ainda na CF/88, o §3º do mesmo artigo 225 define a responsabilização civil, criminal e administrativa da pessoa jurídica por ilícitos e danos ao meio ambiente. Em sede infraconstitucional, a Lei 6.938/1981 (Política Nacional do Meio Ambiente — PNMA), em seu artigo 3º, IV, define como poluidores “a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental”, assim como fixa pelo artigo 14, § 1º, que, sem obstar a aplicação das penalidades administrativas ou criminais, “é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos.” Refere-se, portanto, à responsabilização objetiva por danos ambientais.

No âmbito criminal, tal sentido deve nortear-se pela Lei 9.605/1998, pela qual, em seu artigo 2º, “quem, de qualquer forma, concorre para a prática dos crimes previstos nesta Lei, incide nas penas a estes cominadas, na medida da sua culpabilidade, bem como o diretor, o administrador, o membro de conselho e de órgão técnico, o auditor, o gerente, o preposto ou mandatário de pessoa jurídica, que, sabendo da conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir para evitá-la.” A estratégia “ESG” abarca as pessoas jurídicas.

O artigo 3º da mesma lei define que “as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade.” Trata-se de juridicidade da dimensão “E” de ESG que se estende às ações e/ou omissões praticadas por pessoa jurídica cuja eventual imputação de violação a algum padrão normativo ambiental seja apurada.

A  estratégia ESG de uma empresa ou organização deve considerar toda a rede de agentes de sua estrutura, sobretudo em sua cadeia logística, sob uma eficiente “due diligence”. Isso porque notória é a expansão da interpretação jurídica acerca da responsabilidade corporativa ESG, neste caso, de administradores e diretores pelo gerenciamento de riscos ambientais e climáticos, com destaque ao case internacional envolvendo a petrolífera britânica Shell.

Em relação ao planejamento, implementação e operação de uma atividade, obra ou empreendimento, o artigo 10 da PNMA fixa a obrigatória sujeição ao licenciamento ambiental, análise prévia sem a qual inúmeros setores econômicos nacionais não poderão ser concebidos, tampouco operarem, sob pena de incorrer em infrações e ilícitos ambientais. Neste ponto, é necessário destacar o papel do dever fiduciário ambiental dos financiadores dessas atividades, como bem dispõe o artigo 12 e parágrafo único da PNMA, dever este pressuposto pelo sentido jurídico de toda estratégia ESG  lida sob as lentes do ordenamento jurídico brasileiro vigente.

No Brasil a competência constitucional administrativa de proteção do meio ambiente é comum entre todos os entes federativos (artigo 23, CF/88), o que sobreleva a importância da abordagem estratégica de ESG de governança e de gestão organizacional acerca dos aspectos ambientais e climáticos, sobretudo nas empresas ou organizações que desenvolvem atividades, obras ou empreendimentos com grandes impactos, sendo um princípio da Ordem Econômica nacional, conforme artigo 170, IV, da CF/88.

Nesse recorte do quadro regulatório basilar, o sentido E do “ESG” em um pessoa jurídica, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, está ligado ao necessário nível de compliance com o conjunto de políticas e normas de proteção do meio ambiente e de gestão dos riscos e dos impactos potenciais ou concretos causados à sua integridade e qualidade incidentes sobre a atividade ou setor econômico e que devem ser observados e difundidos.

Sentido jurídico de ESG na dimensão ‘S’ social

Em relação à dimensão “S”, de Social, da abordagem ESG em uma pessoa jurídica, a tarefa se concentra em dar a devida prioridade ao componente humano relacionado à determinada estrutura empresarial e ao exercício da atividade econômica desempenhada.

É importante ter em mente, dentre outros fatores, a incidência das normas de proteção ao consumidor (Código de Defesa do Consumidor). Da mesma forma, a acepção jurídica a ser extraída da dimensão “S” social da estratégia ESG não poderá se desviar das obrigações e práticas trabalhistas, na medida em que a todos os colaboradores e colaboradoras são garantidos os direitos e garantias de saúde, segurança e proteção do trabalho, à luz do artigo 6º da CF de 1988, relativos aos direitos sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, além da observação ao Decreto 9.571/2018, instituidor das Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos.

Conforme esse decreto, o seu artigo 1º dispõe que as Diretrizes Nacionais sobre Empresas e Direitos Humanos são estabelecidas para médias e grandes empresas, incluídas as empresas multinacionais com atividades no Brasil, ressalvando, no § 1º, que “as microempresas e as empresas de pequeno porte poderão, na medida de suas capacidades, cumprir as Diretrizes de que trata este Decreto, observado o disposto no artigo 179 da Constituição”.

No seu artigo 5º há previsto que caberá às empresas “monitorar o respeito aos direitos humanos na cadeia produtiva vinculada à empresa” (inciso I), bem como “divulgar internamente os instrumentos internacionais de responsabilidade social e de direitos humanos” como os Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos da ONU, as Diretrizes para Multinacionais da OCDE e as Convenções da OIT (inciso II). Trata-se de norma basilar para a dimensão social da estratégia ESG.

Dentro da dimensão “S” do ESG, merecem ainda observância o Estatuto da Pessoa com Deficiência, o Estatuto do Idoso, assim como o Estatuto da Igualdade Racial, entre outros arcabouços jurídicos impositivos que, se o que se pretenda instituir em uma organização seja a igualdade, a diversidade e a pluralidade, esses diplomas são condições sem as quais toda e qualquer estratégia ESG não se sustentará.

Sentido jurídico de ESG na dimensão ‘G’ governança

Por fim, a terceira e última dimensão “G”, de governança, da abordagem e estratégia ESG em uma pessoa jurídica deve dizer respeito à estrutura de condução da sua governança e gestão das atividades finalísticas e de meio.

Neste ponto, refletir sobre o sentido jurídico da estratégia ESG empresarial conduz inexoravelmente à forma pela qual a organização é dirigida, controlada e supervisionada, exigindo-se que diretrizes como transparência, accountability, ética, integridade, conformidade e eficiência estejam consagradas em sua estrutura, atividades, projetos e ações.

Para as empresas e organizações privadas que contratam com a Administração Pública, inclusive, cabe desenvolver e implantar de modo efetivo sistemas e programas de integridade e compliance, conforme passou a dispor a nova Lei de Licitações (artigo 25, §4º). Ademais, não apenas para as organizações que participam de licitações, como também — e em especial — para as chamadas companhias de capital aberto, toda e qualquer estratégia “ESG” na dimensão “G” de governança deve estar assentada em boas práticas de governança, gestão de riscos, auditoria e compliance, requisitos obrigatórios no mercado de capitais.

Em relação ao sentido jurídico específico da conjugação articulada e sistêmica dessas três dimensões ambiental, social e de governança da abordagem ESG em uma pessoa jurídica, inescapável ressaltar a função social da propriedade e da empresa, diretriz constitucional prevista pelos artigos 5º, XXIII; 170, III; 182, § 2º e 186, todos da CF/88.

Em sede infraconstitucional, a Lei 6.404/1976 (Lei das Sociedades por Ações) em seu artigo 116, parágrafo único, dispõe que “o acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender”.

Além disso, essencial o artigo 154 da mesma lei, o qual prevê que “o administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa”. Cuida-se de dever com evidente alinhamento à abordagem da estratégia “ESG”. Destaca-se que padrões “ESG” servem como reconhecimento da responsabilidade socioambiental da empresa, como um agente de impacto e transformação social, extrapolando a mera geração de lucro, para assumir amplas responsabilidades diante da pluralidade de stakeholders e desafios atuais. [4]

A função social da propriedade representa poder-dever positivo, exercido em prol da coletividade, de forma a se dar à propriedade uso compatível com o interesse coletivo. [5] Todo sentido jurídico da estratégia ESG deve corresponder à orientação e à delimitação concreta do desempenho das atividades econômicas dentro de um paradigma que internalize e considere os interesses da sociedade e não apenas as corporações, assim como que previna, controle e corrija as externalidades sociais, humanas e ambientais causadas e/ou potencializadas.

Portanto, o sentido jurídico a ser relacionado à abordagem e à estratégia ESG em uma organização ou empresa deve ser aquele capaz de incorporar e concretizar a sua função social, constituindo-a pelos fatores ambientais, sociais e de governança, além da conformidade com o conjunto de normas legais incidentes. Desvirtuá-la desse norte potencializará as chances de “greenwashing” e de práticas similares de deturpação do real e necessário sentido para a agenda ESG contemporânea.

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[1] IBGC. Boas Práticas para uma Agenda ESG nas organizações. São Paulo, SP: IBGC, 2022, p. 9-10.

[2] ARAGÃO, Alexandra. Compliance ambiental: oportunidades e desafios para garantir um desempenho empresarial mais verde, real e não simbólico. In: ARAGÃO, Alexandra; GARBACCIO, Grace Ladeira (coord). Coimbra: Universidade de Coimbra, 2020.

[3] BECK, Ulrich. A metamorfose do mundo: Novos conceitos para uma nova realidade. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

[4] GALINDO, Fábio; ZENKNER, Marcelo; KIM, Yoon Jung. Fundamentos do ESG: geração de valor para os negócios e para o mundo. Belo Horizonte: Fórum, 2023, p. 145.

[5] COMPARATO, Fábio Konder. Função social de propriedade dos bens de produção. Tratado de direito comercial. Tradução. São Paulo: Saraiva, 2015. Acesso em: 23 fev. 2023.

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