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Lavagem de dinheiro e a narrativa da infração antecedente

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Sumário


Opinião

Sabe-se que o crime de lavagem de dinheiro é acessório em relação à infração penal antecedente. Ainda que se trate de acessoriedade limitada, posto que ligada apenas ao injusto penal (tipicidade e antijuridicidade), é inegável que a existência da lavagem depende da existência de um crime ou uma contravenção penal antecedente [1].

Do ponto de vista processual, essa relação de acessoriedade caracteriza uma questão prejudicial [2], isto é, uma questão que se coloca em relação a outra, por meio de um vínculo de subordinação. Assim, a resolução da questão prejudicial irá condicionar o sentido ou o conteúdo da questão a ela subordinada [3].

No escólio de Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini, a resolução da questão prejudicial é um antecedente lógico da solução a ser dada a outra questão (por exemplo: antes de saber se houve lavagem de dinheiro, é preciso saber se ocorreu uma infração penal antecedente que gerou bens, direitos ou valores a serem lavados) cujo resultado condiciona o conteúdo da decisão prejudicada (por exemplo: se não houve infração antecedente, o acusado deverá ser absolvido da acusação de lavagem) [4].

A solução da questão prejudicial, como explica Barbosa Moreira, “é antecipação do juízo sobre a outra questão. Resolvida a prejudicial, resolvida está, virtualmente, a outra, bastando que o juiz tire as consequências lógicas de rigor” [5].

Justa causa duplicada

Não se desconhece que para o recebimento da denúncia no caso de lavagem de dinheiro basta a probabilidade, ou seja, a existência de indícios suficientes, e não a certeza da existência da infração penal antecedente.

Essa distinção entre o nível de convencimento de mera probabilidade para o recebimento da denúncia e de certeza para a condenação foi bem retratada pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do HC 65.041, 6ª Turma, rel. min. Paulo Gallotti, j. 21/6/2007, m.v., RT 868/551.

Em suma, a primeira parte do § 1º do artigo 2º da Lei 9.613/1998 define, legalmente, qual o grau de convencimento exigido do julgador, quanto à existência do crime antecedente, no momento do recebimento da denúncia (artigo 395, CPP).

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Dinheiro, dívidas

Nesse sentido, no que toca à justa causa, do ponto de vista objetivo, exige-se uma “justa causa duplicada” [6]. É necessário que haja indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, além da prova da existência da própria lavagem de dinheiro.

Narrativa da infração antecedente

Por outro lado, no que diz respeito à questão da aptidão ou inépcia da denúncia (artigo 41 do CPP), a questão não está relacionada tão somente com a valoração dos indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, mas também diz respeito à narrativa dos fatos imputados, sendo imprescindível que na denúncia o acusador narre, concreta e especificamente — além dos meios utilizados para o suposto branqueamento ou lavagem em si — em que consistiu a infração antecedente, e quais os bens, direitos ou valores, que dela provieram, direta ou indiretamente [7].

Isso porque o artigo 41 do CPP exige, para a aptidão da denúncia, que ela contenha, entre outros elementos, “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”.

Portanto, a peça acusatória deve conter a exposição do fato delituoso em toda a sua essência e com todas as suas circunstâncias, de maneira a individualizar o quanto possível a conduta imputada, bem como sua tipificação, com vistas a viabilizar a persecução penal e o contraditório pelo réu (artigo 41 do CPP e 5º, LV, da CF/1988) [8].

Assim, tendo em vista a acessoriedade material do crime de lavagem em relação à infração antecedente, esta é considerada elemento do crime do artigo 1º da Lei 9.613/1998, de modo que os fatos que caracterizaram a infração antecedente deverão ser descritos com todas as suas circunstâncias na denúncia, sob pena de se caracterizar como inepta [9].

Nessa linha, o voto do então ministro do STF, Celso de Mello, proferido na oportunidade do julgamento do RHC 121.835 AgR: “A configuração típica do crime de lavagem de dinheiro exige, para aperfeiçoar-se, a presença de uma infração penal antecedente, que se qualifica como elemento normativo do tipo, a significar que, ausente este, deixa de caracterizar-se o crime de lavagem” [10].

Com efeito, o crime de lavagem de capitais pressupõe a prática de uma infração penal antecedente, da qual se extraem bens, direitos ou valores, os quais serão introduzidos na economia formal, como forma de ocultar e dissimular sua origem ilícita. Afinal, se o dinheiro não é sujo, não se cogita a possibilidade de lavá-lo.[11] O injusto possui, então, uma acessoriedade material [12].

Nesse exato sentido, Gustavo Henrique Badaró e Pierpaolo Cruz Bottini chamam atenção para o fato de que “é necessário que na denúncia ou queixa o acusador narre, concreta e especificamente, — além dos meios utilizados para o branqueamento ou lavagem em si — em que constituiu a infração antecedente, e quais os bens, direitos ou valores, que dela provieram, direta ou indiretamente”.

Isso porque, continuam os autores, “tendo em vista a acessoriedade material do crime de lavagem em relação à infração antecedente, esta é considerada elemento do crime do art. 1º da Lei 9.613/1998. Assim sendo, os fatos concretos que caracterizaram a infração antecedente deverão ser descritos com todas as suas circunstâncias”.

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E diante dos ensinamentos, concluem que “sem tal narrativa, do ponto de vista do acusado, restará inviabilizada a ampla defesa. Por outro lado, do ponto de vista do julgamento, facilmente se poderá violar a regra da correlação entre acusação e sentença, se não houver uma imputação precisa, delimitando o objeto do processo em que se julga a lavagem de dinheiro” [13].

Jurisprudência sobre o tema

Inclusive, ao reconhecer a inépcia de denúncia em caso de lavagem de dinheiro, o STF assentou que:

“[…] 5. Denúncia que não descreve adequadamente o fato criminoso é inepta. Precedentes. 6. Nos termos do art. 41 do Código de Processo Penal, um dos requisitos essenciais da denúncia é “a exposição do fato, com todas as suas circunstâncias”. 7. Esse requisito, no caso concreto, não se encontra devidamente preenchido em relação ao crime de lavagem de dinheiro. 8. A denúncia não descreve minimamente os fatos específicos que constituiriam os crimes antecedentes da lavagem de dinheiro, limitando-se a narrar que o paciente teria dissimulado a natureza, a origem, a localização, a disposição e a movimentação de valores provenientes de crimes contra a Administração Pública. 9. Não há descrição das licitações que supostamente teriam sido fraudadas, nem os contratos que teriam sido ilicitamente modificados, nem os valores espuriamente auferidos com essas fraudes que teriam sido objeto de lavagem. 10. A rigor, não se cuida de imputação vaga ou imprecisa, mas de ausência de imputação de fatos concretos e determinados. 11. O fato de o processo e julgamento dos crimes de lavagem de dinheiro independerem do processo e julgamento dos crimes antecedentes (art. 2º, II, da Lei nº 9.613/98) não exonera o Ministério Público do dever de narrar em que consistiram esses crimes antecedentes. 12. O grave defeito genético – ausência de descrição mínima da conduta delituosa – de que padece a denúncia não pode ser purgado pelo advento da sentença condenatória, haja vista que, por imperativo lógico, o contraditório e a ampla defesa, em relação à imputação inicial, devem ser exercidos em face da denúncia, e não da sentença condenatória. 13. A sentença condenatória jamais poderia suprir omissões fáticas essenciais da denúncia, haja vista que o processo penal acusatório se caracteriza precisamente pela separação funcional das posições do juiz e do órgão da persecução. 14. Ademais, sem uma imputação precisa, haveria violação da regra da correlação entre acusação e sentença. 15. A deficiência na narrativa da denúncia inviabilizou a compreensão da acusação e, consequentemente, o escorreito exercício da ampla defesa.”  (STF, HC 132.179, 2ª T., rel. min. Dias Toffoli, j. 26/9/2017)

De modo semelhante, na oportunidade do julgamento do RHC nº 106.107/BA, o ministro Ribeiro Dantas asseverou que:

“[…] A denúncia de crimes de branqueamento de capitais, para ser apta, deve conter, ao menos formalmente, justa causa duplicada, que exige elementos informativos suficientes para alcançar lastro probatório mínimo da materialidade e indícios de autoria da lavagem de dinheiro, bem como indícios de materialidade do crime antecedente, nos termos do art. 2º, § 1º, da Lei 9.613/98. Outrossim, por ocasião da elaboração da inicial com indícios suficientes da materialidade da infração antecedente, é despiciendo o conhecimento da autoria, a verificação de seu substrato da culpabilidade e sua punibilidade, sendo irrelevante haver condenação transitada em julgado ou até mesmo o trâmite processual persecutório, haja vista a autonomia relativa do processo penal do crime acessório da lavagem em relação ao seu antecedente, principal. Entrementes, necessário que se conste na peça acusatória não apenas o modus operandi do branqueamento, mas também em que consistiu a infração antecedente e quais bens, direitos ou valores, dela provenientes, foram objeto da lavagem, sem, contudo, a necessidade de descrição pormenorizada dessa conduta antecedente” (RHC n. 106.107/BA, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 25/6/2019, DJe de 1/7/2019).

Em julgado mais recente, também em caso envolvendo o delito de lavagem de dinheiro, a colenda 5ª Turma do STJ reconheceu a inépcia de denúncia que não especificou o numerário supostamente obtido no delito antecedente e nem o destino das quantias supostamente obtidas. Vejamos:

“[…] 8. Quanto ao delito de lavagem de dinheiro, não se verificou na narrativa ministerial a identificação do numerário supostamente obtido no delito antecedente e nem do destino das quantias supostamente obtidas.

9. Inépcia da denúncia e ausência de justa causa para a ação penal devidamente reconhecidas na hipótese.

10. Agravo regimental provido para determinar o trancamento da ação penal.” (AgRg no RHC nº 116.914/RS, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 3/8/2021, DJe de 16/8/2021.)

Conclusão

Portanto, é indiscutível a inépcia formal da denúncia relativamente à imputação da prática da ocultação e dissimulação do produto de supostos crimes antecedentes (art. 1º, § 1º, Lei 9.613/98) quando a inicial acusatória não descreve os fatos como preconiza o artigo 41 do CPP, inviabilizando, pois, o exercício da defesa. Afinal, as ações típicas previstas no artigo 1º da Lei de Lavagem devem, necessariamente, ocorrer depois da prática do crime antecedente, pois recaem sobre objeto material constituído pelo produto daquelas infrações.

Com efeito, a estrutura básica do delito de lavagem de dinheiro consiste na relação de causalidade entre o crime antecedente e as ações de ocultação e dissimulação [14]. Malgrado o processo por lavagem possa ser instaurado de forma autônoma, constitui ônus da acusação demonstrar o elo de causalidade entre os dois ilícitos, já que tal relação “não pode ser presumida, sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência”.[15]

Isso implica dizer, em suma, que a imputação concreta em casos envolvendo o delito de lavagem de dinheiro — aquela que se faz em uma ação penal que observa os ditames constitucionais e legais — deve indicar a atividade criminosa prévia, bem como as circunstâncias que “gerou” o preciso produto, descrevendo claramente tudo relacionado à sua existência, composição material, valor e titularidade, assim claramente descrito, sobre o qual recairá a conduta típica de branqueamento ou lavagem em si, sob pena de inépcia.

 


[1] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro. Revista dos Tribunais, 2023. P RB-14-1. Disponível em: https://next-proview.thomsonreuters.com/launchapp/title/rt/monografias/99942511/v5/page/RB-14.1.

[2] PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente . São Paulo: Ed. RT, 2003. p. 125.

[3] Nesse sentido: José Carlos Barbosa Moreira, Questões prejudiciais e questões preliminares. In: Direito Processual Civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro: Borsoi, 1971. p. 85; Antonio Scarance Fernandes, Prejudicialidade: conceito, natureza jurídica, espécies de prejudiciais. São Paulo: Ed. RT, 1988. p. 51.

[4] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI. Op cit. p. RB-14.1.

[5] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Limites objetivos da coisa julgada no sistema do novo Código de Processo Civil. Temas de Direito Processual – primeira série. 2 . ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 86.

[6] Nas lições do Min. Ribeiro Dantas: “3. A denúncia de crimes de branqueamento de capitais, para ser apta, deve conter, ao menos formalmente, justa causa duplicada, que exige elementos informativos suficientes para alcançar lastro probatório mínimo da materialidade e indícios de autoria da lavagem de dinheiro, bem como indícios de materialidade do crime antecedente, nos termos do artigo 2º, § 1º, da Lei 9.613/98”. (STJ, RHC 106.107/BA, 5ª T., rel. Min. Ribeiro Dantas, j. 25.06.2019, v.u.).

[7] BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Op. cit. p. RB-16.3.

[8] Nesse sentido: AgInt no AREsp 1399266/GO, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, DJe 14/02/2019; AgRg no REsp 1765917/CE, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, DJe 12/12/2018; AgRg no REsp 1706677/MA, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, DJe 04/02/2019.

[9] MENDONÇA, Andrey Borges de. Do processo e julgamento. In: DE CARLI, Carla Veríssimo (org.). Lavagem de dinheiro. Prevenção e controle penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2011. p. 494.

[10] RHC 121835 AgR, Relator(a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 13-10-2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-235 DIVULG 20-11-2015 PUBLIC 23-11-2015 RTJ VOL-00238-01 PP-00110.

[11] MATTOS, Pedro Henrique. A imputação e o crime de lavagem de capitais: um estudo crítico sobre a viabilidade da denúncia. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 8, n. 1, p. 409-440, 2022.

[12] PITOMBO, Antônio Sergio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 109-110.

[13] Op. cit. p. RB-16.3.

[14]La comisión de ese delito previo constituye el pressupuesto indispensable que sirve de nexo con el objeto sobre el que van recaer las conductas constitutivas de blanqueo de bienes. De no existir ese nexo, no podrá haber objeto material idóneo para cometer el delito de blanqueo de bienes” (CARPIO DELGADO, Juana Del. El delito de blanqueo de bienes em el nuevo Código penal. Sevilla, 1997. p. 284).

[15] BORGES, Ademar. Inépcia da denúncia por lavagem de dinheiro em razão da atipicidade das infrações penais antecedentes. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BORGES, Ademar (orgs.). Lavagem de dinheiro: pareceres jurídicos. Jurisprudência selecionada e comentada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 171.

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