Se fosse fácil ninguém me chamava!

É possível indenizar-se o dano moral reflexo em situações distintas do ‘caso clássico’?

Compartilhe:

Sumário


Direito Civil Atual

No mais recente Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ), emitido sob o número 832 e datado do último dia 5, consta tese oriunda do julgamento do Recurso Especial 1.697.723-RJ, de relatoria do Ministro Raul Araújo, da 4ª Turma, segundo a qual “o dano moral reflexo (dano por ricochete) pode se caracterizar ainda que a vítima direta do evento danoso sobreviva”.

Segundo informações extraídas do inteiro teor do julgamento:

“Com efeito, não é exclusivamente o evento morte que dá ensejo ao dano por ricochete, aquele sofrido por um terceiro que é vítima indireta do evento danoso. É que o dano moral em ricochete não significa o pagamento da indenização aos indiretamente lesados por não ser mais possível, devido ao falecimento, indenizar a vítima direta. Trata-se, na verdade, de indenização autônoma, por isso devida independentemente do falecimento da vítima direta.”

A mesma 4ª Turma do STJ já havia esboçado o entendimento de que a morte não é o único evento que dá ensejo ao dano por ricochete, pelo que “todo aquele que tem seu direito violado por dano causado por outrem, de forma direta ou reflexa, ainda que exclusivamente moral, titulariza interesse juridicamente tutelado” (Recurso Especial 1.734.536-RS [1]).

Apesar de o chamado caso clássico da responsabilidade civil por dano reflexo encontrar-se positivado no artigo 948 do Código Civil brasileiro, a dispor sobre as indenizações cabíveis no caso de homicídio, a reparação não deve restringir-se à hipótese de morte de ente querido, por força da cláusula geral de responsabilidade civil inserida no artigo 186 do Código Civil.

Tema é controverso

De um lado, há doutrinadores que defendem a restrição absoluta da indenizabilidade dos danos por ricochete ao caso de homicídio previsto no artigo 948, como Sérgio Cavalieri Filho, baseado na doutrina de João de Matos Antunes Varela:

“Os danos reflexamente causados a terceiros, destarte, sem violação de qualquer relação contratual ou extracontratual, não encontram cobertura direta, nem na responsabilidade aquiliana, nem na responsabilidade contratual, porque não decorrem diretamente do ato ilícito. A única exceção que a lei abre à regra geral de que o direito à indenização cabe apenas a quem sofreu diretamente o dano é no caso de morte da vítima; admite-se, como veremos, que a indenização seja pleiteada por aqueles que viviam sob sua dependência econômica, consoante art. 948, II, do Código Civil.” [2]

Carlos Alberto Menezes Direito também limita a ressarcibilidade dos danos reflexos ao caso de homicídio, reconhecendo a possibilidade de indenização do dano extrapatrimonial no artigo 948 do Código Civil, mas “somente pelo fato da morte do parente”. [3]

De outro lado, há autores que sustentam a possibilidade de causação de danos por ricochete para além do “caso clássico”, como Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto Braga Netto, para quem o dano reflexo não requer que a vítima imediata seja morta:

“Mesmo que o dano lhe acarrete ofensa a outros bens jurídicos (v. g., honra, integridade psicofísica e liberdade), o fundamental para apreciar a sua incidência é se de fato o dano injusto reverberou na órbita patrimonial ou existencial de pessoas vinculadas à vítima.” [4]

Hipóteses

ConJur

Para Luís Renato Ferreira da Silva, são várias as hipóteses indenizáveis, incluindo aquelas ligadas às relações de trabalho, a exemplo de quando o empregado sofre acidente e fica impossibilitado de prestar serviço por alguns dias, o que gera perda patrimonial ao empregador, ainda que não tenha sido diretamente atingido pela ofensa [5].

Rafael Peteffi da Silva aponta ainda para a possibilidade de reparação de danos em face de outras situações, como aquelas relacionadas ao inadimplemento contratual, especialmente ante à positivação do princípio da função social do contrato no artigo 421 do Código Civil [6].

A esta segunda corrente se filia este artigo. No ricochete fazem-se presentes todos os elementos do dano próprio, visto que há certeza do prejuízo a partir do vínculo estabelecido pela vítima reflexa com a vítima direta, nexo de causalidade e titularidade de bem jurídico, relacionado ao sofrimento da vítima reflexa [7].

Se, na doutrina nacional, há divergência de posicionamentos, na jurisprudência do STJ há certa uniformidade no reconhecimento de indenizabilidade dos danos reflexos em hipóteses diversas do caso clássico. Além dos exemplos mencionados, tem-se a posição firmada também pelo STF no julgamento da ADI 6.050 [8], segundo a qual é possível pleitear-se o direito à reparação por dano moral por ricochete no âmbito das relações de trabalho.

Sob o Código Civil de 2002, a possibilidade de reparação por danos reflexos extrapatrimoniais deriva diretamente do artigo 948 e, também, do princípio da reparação integral, a nortear a teoria da responsabilidade civil no Brasil, e estende-se a um número expressivo de possibilidades fáticas. Os limites do texto do artigo 948 não impediram que o STF e, sobretudo, o STJ reconhecessem a indenizabilidade de situações diversas do caso de homicídio.

O ponto de partida do reconhecimento deste tipo de reparação no Brasil é, portanto, o valor de afeição, o que demanda a análise casuística do efetivo prejuízo decorrente do evento danoso a partir da constatação de um vínculo afetivo. Em outras palavras, trata-se do prejuízo experimentado pela vítima indireta a partir da afeição mantida com a vítima direta.

Afinal, parte considerável da construção doutrinária e jurisprudencial brasileira sobre o dano reflexo, especialmente quando se trata de dano extrapatrimonial, foi influenciada pela perspectiva francesa, com a gênese do préjudice d’affection. Com base na afeição, a jurisprudência francesa passou a reparar os danos por ricochete em decisões do final do século 19, confirmando seu protagonismo na acepção da reparação do dano moral.

Há, portanto, três fundamentos doutrinários nucleares para a reparação dos danos por ricochete no Brasil, a conduzirem à possibilidade de ampliação das hipóteses indenizáveis para além do evento morte: o artigo 948 como fonte legal direta, o princípio da reparação integral e a cláusula geral norteadores da responsabilidade civil no ordenamento jurídico nacional e a figura do préjudice d’affection, a partir da contribuição da jurisprudência francesa.

 

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).

_______________________________

[1] STJ. REsp 1734536-RS, rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 06/08/2019, DJ 24/09/2019.

[2] CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 16. ed. Barueri: Atlas, 2023. p. 136.

[3] “De todos os modos, o codificador de 2002 teve cautela de incluir no dispositivo a parte final “sem excluir outras reparações”, o que, sem dúvida, chancela a assentada jurisprudência impondo a reparação pelo dano moral somente pelo fato da morte do parente, não havendo restrição alguma que vá́ além da mulher e dos filhos, dependendo das circunstâncias de cada caso. E, ainda, nas hipóteses em que há o evento fatal sequer se exige a prova do dano.” (CAVALIERI FILHO, Sergio; MENEZES DIREITO, Carlos Alberto; TEIXEIRA, Sálvio de Figueiredo (Coord.). Comentários ao novo Código Civil: da responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. v. 13. p. 445).

[4] BRAGA NETTO, Felipe Peixoto; FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 4. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. p. 342.

[5] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Da legitimidade para postular indenização por danos morais. Revista Ajuris, Porto Alegre, n. 70, a. 24, p. 185-205, jul. 1997. p. 192.

[6] PETEFFI DA SILVA, Rafael. Sistema de justiça, função social do contrato e a indenização do dano reflexo ou por ricochete. Revista Sequência, n. 63, p. 353-375, dez. 2011. p. 355-362.

[7] SILVA, Luís Renato Ferreira da. Da legitimidade para postular indenização por danos morais. Revista Ajuris, Porto Alegre, n. 70, a. 24, p. 185-205, jul. 1997. p. 192.

[8] STF. ADI 6050, rel. Min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 26/06/2023, DJe 18/08/2023.

Fonte

Compartilhe :

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *