A opinião dos especialistas é quase unânime: obrigar que médicos, pacientes e instituições validem atestados por meio de uma única via — como a Atesta CFM — é inconstitucional. A Resolução nº 2.382/24 do Conselho Federal de Medicina (CFM), que determina que atestados só têm validade se emitidos através de sua plataforma própria, excede seu poder regulamentar, de acordo com juristas.
Atesta CFM seria obrigatório para validar atestados e laudos a partir de 2025
A norma viola a Constituição no princípio da legalidade, no direito à vida privada dos pacientes e no direito à proteção de dados pessoais sensíveis, segundo Fernando Aith, professor titular da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP/USP). “A norma fere, ainda, o artigo 37 da Constituição. Ela cria, por meio de ato normativo infralegal, uma plataforma que vai contra o princípio da legalidade, da moralidade administrativa, da impessoalidade e da pessoalidade. Viola vários dispositivos do artigo 5º, do artigo 37 caput e do 198 da Constituição Federal”, explica.
O juiz Bruno Anderson Santos da Silva, da 3ª Vara Federal Cível do Distrito Federal, suspendeu a resolução com uma liminar nesta segunda (4/11).
Advogados apontam uma série de desrespeitos das normas constitucionais para a criação de obrigações legais. O primeiro ponto é que uma autarquia não tem competência para criar obrigações primárias. “Cabe-lhes apenas implementar a execução prática das leis vigentes. Assim, a resolução do CFM configura um ato inconstitucional”, diz Juliana Teixeira Barreto, especialista em Direito Médico e da Saúde do escritório Kadi Advogados.
A resolução também não observa a Lei n.º 14.063/2020, que já regulamentou o uso de assinaturas eletrônicas na área da saúde. “A lei dispõe que esses documentos devem ser disciplinados por ato do Ministério da Saúde. Além disso, a Constituição Federal, em seu artigo 198, inciso I, estabelece que as ações e serviços públicos de saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde devem seguir a diretriz da descentralização, com direção única em cada esfera de governo”, complementa a advogada. Para ela, o CFM usurpou prerrogativas do Ministério da Saúde no que se refere à gestão do SUS.
Juliana aponta que a resolução também fere o artigo 4º da Lei da Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019). O artigo assegura que os únicos entes capazes de regulamentar as normas tratadas pela lei integram a administração pública. Henderson Fürst, presidente da Comissão Especial de Bioética da OAB-SP, concorda. “Isso impacta em todo o SUS e na logística de lugares sem a adequada instalação de internet ou facilidade para retirada do talonário físico, além de todo um mercado interno desenvolvido em prol da telessaúde”, diz. A norma do CFM também previa que os atestados em papel só seriam válidos se escritos em folhas fornecidas pelo conselho.
Todos os especialistas consultados concordam que o CFM ultrapassou suas competências. “Embora seja dever e escopo do CFM a adequada regulação da Medicina, a regulação em si não pode impactar outras esferas envolvidas no sistema de saúde, o que torna a resolução potencialmente inconstitucional e ilegal”, diz Fürst.
Dados sensíveis expostos
Outra grande preocupação é a possibilidade de disponibilizar a base de dados da plataforma a terceiros, já prevista na resolução. “A resolução viola o direito à vida privada, à imagem e à honra dos pacientes. Os conselheiros e funcionários do CFM vão ter pleno acesso a dados sensíveis e ultrassensíveis dessas pessoas, que não consentiram isso. Elas consentem aos médicos de confiança delas”, comenta Aith.
Essa questão viola o artigo 5º da Constituição, que prevê a proteção dos dados pessoais, inclusive em meios digitais. “O CFM está criando um monopólio de dados sensíveis de saúde que serão reunidos nessa plataforma sob sua própria gerência. O potencial econômico, político e social de uma plataforma desta envergadura é incomensurável e não deve ficar sob a gestão e responsabilidade de uma instituição corporativa de médicos”, detalha o jurista.
De acordo com ele, o Atesta CFM seria um dos maiores bancos de dados de pessoas do mundo.
Perspectiva trabalhista
Uma das justificativas para a obrigação do uso do Atesta CFM é o combate à compra de atestados e laudos falsos. Para os advogados que falaram com o ConJur, a proposta não resolve o problema. “O CFM apressou-se a evitar uma prática muito arriscada à saúde coletiva, que é a venda de atestados ou receitas médicas, mas o fez isolado de outras instâncias que também têm interesse na questão”, diz Fürst.
Para Antônio Carlos Souza de Carvalho, advogado trabalhista e sócio do escritório Souza de Carvalho Sociedade de Advogados, o conselho parece apenas querer controlar a emissão dos atestados. “Ferramentas de verificação de autenticidade da assinatura já existem e em grande quantidade. O CFM não tem a competência legal de atestar a veracidade ou a consistência de um diagnóstico médico, apesar da proposta parecer apontar para esse caminho. E a exigência de que os médicos usem a plataforma é ilegal, usurpa poderes de União, estados e municípios”, diz.
O trabalhista aponta que o CFM sequer apresentou embasamento estatístico sobre a dimensão real do problema. “Crimes de falsificação são assunto do Estado brasileiro em todas as suas instâncias. A autenticidade do diagnóstico médico é outra questão, que não se resolve apenas na responsabilidade do médico que assina. Há que se discutir diferentes opiniões científicas, estratégias e hipóteses diagnósticas. Superadas essas barreiras, ficariam ainda as questões relacionadas à ética médica e aos crimes de falsidade ideológica que acontecem nessa seara”, elucida.
A proposta não tem relevância real para a Justiça do Trabalho, segundo o advogado. “Via de regra, casos em que há necessidade de avaliação médica são encaminhados para perícia isenta que analisa a pertinência de determinado diagnóstico. Mas isso não significa necessariamente que o laudo em sentido contrário seja necessariamente falso, ele pode apenas ser divergente ao posicionamento do perito. Sempre haverá um grau de subjetividade, compatível com a liberdade do exercício da profissão, que não pode ser limitado pelo CFM, mas sim garantido”, conclui.
Aith lembra, ainda, que só a lei pode impor limitações ao exercício da profissão. “O CFM está impondo uma restrição a exercício da profissão médica, que não está prevista em lei”, conclui.