No vasto e intrincado cenário jurídico que envolve as relações patrimoniais entre casais, duas figuras se destacam pela sua relevância prática e por suas nuances delicadas: o pacto antenupcial e o contrato de namoro. Enquanto o primeiro já se encontra solidamente consolidado em nosso ordenamento jurídico e é amplamente utilizado, o segundo vem ganhando espaço mais recentemente, na esteira de uma sociedade em constante transformação e cujos vínculos afetivos assumem novas feições. Cada um desses instrumentos possui funções e efeitos distintos, porém ambos compartilham o propósito de delimitar com precisão a atuação do Direito nas relações entre indivíduos que optam por conviver de maneira formal ou não formal, com impacto direto no campo do direito sucessório.
Faz-se imprescindível, então, analisar a fundo as formalidades, as limitações e os efeitos de cada um, sobretudo quando confrontados com o espectro das normas sucessórias, que nem sempre podem ser moldadas pela vontade das partes.
O Pacto Antenupcial: Delimitando o Regime de Bens
O pacto antenupcial é, sem dúvida, um dos mais tradicionais instrumentos utilizados para a regulamentação das relações patrimoniais entre os cônjuges, sendo obrigatório nos casos em que os nubentes optem por qualquer regime de bens diverso do regime legal de comunhão parcial de bens. Sua celebração, conforme dispõe o artigo 1.653 do Código Civil, deve ocorrer por escritura pública e previamente ao casamento, pois uma vez consumada a união sem esse instrumento, o regime de bens estabelecido pela lei será automaticamente aplicado.
Em termos formais, o pacto antenupcial é um contrato solene que exige, além de sua formalização por escritura pública, o registro no Cartório de Registro de Imóveis após o casamento, como prevê o artigo 1.657 do Código Civil, para que produza efeitos perante terceiros.
A grande relevância do pacto antenupcial está na liberdade de estipulação conferida às partes para que organizem a sua vida patrimonial de maneira que melhor atenda aos seus interesses, sempre respeitando, é claro, os limites impostos pela ordem pública e pelos bons costumes. Assim, o pacto pode prever, por exemplo, a separação total de bens, a comunhão universal, ou mesmo cláusulas específicas acerca da administração e da disposição dos bens adquiridos durante o matrimônio.
Todavia, essa liberdade de convenção encontra suas fronteiras quando adentra o campo do direito sucessório. O artigo 1.845 do Código Civil estabelece que os herdeiros necessários – descendentes, ascendentes e cônjuge – possuem direito à legítima, que corresponde a metade dos bens da herança, sendo esta porção absolutamente indisponível. Assim, ainda que o pacto antenupcial possa dispor sobre a partilha de bens em vida, o cônjuge não poderá renunciar antecipadamente ao seu direito de herança, uma vez que tal disposição configuraria nulidade de pleno direito. Esse entendimento é corroborado pela doutrina clássica de Silvio Rodrigues, que afirma que “os pactos que busquem burlar a legítima ou dela dispor em vida são manifestamente nulos, pois ofendem a essência do Direito Sucessório”.
Contrato de Namoro: Acordo para a Evitação de Efeitos Jurídicos Indesejados
De outro lado, o contrato de namoro surge como uma construção jurídica mais recente, fruto de uma sociedade em que os relacionamentos afetivos se apresentam de maneira fluida, muitas vezes sem a intenção de constituir uma união estável ou casamento. O intuito primordial desse instrumento é evitar que, em um momento futuro, o relacionamento afetivo seja confundido com uma união estável, o que implicaria a aplicação automática das regras patrimoniais do regime da comunhão parcial de bens, conforme o artigo 1.725 do Código Civil.
Embora o contrato de namoro ainda não tenha sido regulamentado de forma específica no ordenamento jurídico brasileiro, sua validade jurídica tem sido reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência, desde que ele deixe expressamente claro que as partes não possuem a intenção de constituir família ou estabelecer um vínculo conjugal. O ponto central aqui é a ausência de affectio maritalis, ou seja, a ausência de vontade de formar uma entidade familiar.
Contudo, o contrato de namoro, por si só, não é blindado de questionamentos futuros. Caso o relacionamento evolua para uma união estável sem que o casal faça a devida alteração contratual ou formalização do novo estado civil, pode ocorrer o reconhecimento da união estável judicialmente, mesmo diante da existência do contrato de namoro. Maria Berenice Dias, doutrinadora de renome no Direito de Família, aponta que “o contrato de namoro é uma precaução que pode ter seus limites quando confrontado com provas concretas da formação de uma verdadeira união estável, marcada pela convivência pública, contínua e com o objetivo de constituir família”.
Limites de Conteúdo e a Incidência do Direito Sucessório
Tanto o pacto antenupcial quanto o contrato de namoro possuem limites em relação ao conteúdo das disposições que podem conter. Como já mencionado, no caso do pacto antenupcial, as disposições que violem a legítima são nulas. No entanto, o contrato de namoro, enquanto instrumento de natureza atípica, deve focar exclusivamente em delimitar a natureza do relacionamento e não pode, por exemplo, dispor sobre partilha de bens ou renúncia a direitos sucessórios, uma vez que, por não se tratar de um casamento ou união estável, os direitos sucessórios sequer surgem no âmbito dessa relação.
Assim, diferentemente do pacto antenupcial, que possui efeitos patrimoniais amplos, o contrato de namoro limita-se a estabelecer uma cláusula de não reconhecimento de união estável, sem que possa avançar para questões sucessórias. Isso significa que, caso o relacionamento venha a ser qualificado como união estável em um momento posterior, os direitos sucessórios previstos para os companheiros nos artigos 1.790 e 1.829 do Código Civil serão aplicáveis.
Efeitos e Possibilidades de Cada Instrumento
Em relação aos efeitos práticos, o pacto antenupcial tem como principal função a definição do regime de bens e as consequências patrimoniais advindas desse regime durante o casamento e após a sua dissolução, seja por separação ou morte. Já o contrato de namoro, por sua vez, busca essencialmente afastar o reconhecimento de uma união estável e, consequentemente, evitar a aplicação das regras patrimoniais que decorrem dessa modalidade de convivência.
Ambos os instrumentos oferecem aos casais uma autonomia patrimonial que lhes permite ajustar suas relações dentro dos limites da legalidade, mas cada qual tem sua própria função e campo de aplicação. Enquanto o pacto antenupcial atua na antecipação de efeitos econômicos em um casamento, o contrato de namoro é uma salvaguarda contra a imposição de efeitos jurídicos indesejados em uma relação afetiva que, pelo menos naquele momento, não se reveste de caráter familiar.
Considerações Finais
A utilização consciente e informada de ambos os instrumentos — pacto antenupcial e contrato de namoro — possibilita que as partes envolvidas tenham maior controle sobre suas relações patrimoniais e os efeitos jurídicos futuros que delas possam advir. Contudo, é essencial que se compreendam os limites e as possibilidades de cada um, sobretudo no que tange ao direito sucessório, que impõe barreiras intransponíveis à vontade das partes no que concerne à legítima dos herdeiros necessários.
Em um contexto jurídico em que a autonomia privada é cada vez mais valorizada, o pacto antenupcial e o contrato de namoro destacam-se como instrumentos de suma importância para a organização patrimonial de casais, permitindo-lhes prever e evitar litígios futuros. Todavia, como bem pontua o doutrinador Caio Mário da Silva Pereira, “a autonomia da vontade, embora ampla, não pode, sob pretexto algum, sobrepor-se aos princípios que regem a ordem pública e a função social da família”.